terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Dos porões da memória

Por Tony Hara

A literatura marginal de Londrina

Em 1959 a cena literária londrinense inicia a sua história em grande estilo. Dois mil exemplares do romance Escândalos da Província vendidos em uma semana. O seu autor, o jovem jornalista Edison Maschio, foi aconselhado por amigos a sair da cidade. As ameaças, os recados, os insultos exigiam prudência numa época em que os homens costumavam andar armados. Maschio caiu fora e esperou a poeira vermelha baixar.

Uma estréia como essa não deveria ser esquecida. Mas junto com a poeira desceu também um véu de silêncio em torno do romance. O livro, apesar de conhecido, foi pouco citado e comentado nos trabalhos acadêmicos ou na produção historiográfica local. Na imprensa são raras as reportagens ou as entrevistas com Edison Maschio, que hoje tem 75 anos, e muitas histórias para contar. Até mesmo nos cadernos publicados em comemoração ao aniversário da cidade o romance pioneiro e seu autor são solenemente esquecidos.

O processo de silenciamento experimentado por Maschio é emblemático, mas ele não foi o único a merecer esse tipo de tratamento na Província das Letras. O jornalista Marinósio Filho e o escritor Tadeu França vivem também no limbo do esquecimento. Eles produziram obras que podem ser consideradas como desdobramentos do Escândalos da Província. Marinósio publicou em 1979 o livro Dos Porões da Delegacia de Polícia; Tadeu França, Luzes Negras do Submundo (1973). Escândalos, submundo, porões — o subterrâneo da cidade. Esses autores abordam, seja através da sátira ou da denúncia, as redes clandestinas, as trocas de favores, as práticas ilícitas que movimentaram o alto mundo e submundo de Londrina nas décadas de 60 e 70.

Eles provocaram um incômodo e sofreram um posterior silenciamento porque tocam nas redes formadas em torno do gerenciamento das ilegalidades. Sem o entendimento das redes clandestinas, dessas práticas de gestão do ilegal, a história da cidade fica incompleta, fica sem a dimensão dramática, humana dos acontecimentos que são encenados no cotidiano. É essa rede subterrânea que vai afetar a vida as pessoas, efetivamente. Maschio, Marinósio, França tentaram revelar aquilo que os “cidadãos de bem”, os “construtores do progresso” procuravam ocultar, e isso tinha um preço.

Para se ter uma idéia de como eram formadas as redes de gestão do ilegal, logo no início do romance Escândalos da Província encontramos uma cena exemplar. O bispo aciona o prefeito para intermediar junto ao delegado a liberação do jogo na festa junina promovida pela igreja. O acordo é firmado, meio a meio, e todos saem ganhando à custa dos apostadores e fiéis da “fézinha”. É uma situação clássica: a lei que proíbe o jogo cria uma campo para a gestão do ilegal. Os atores são obrigados a acionar a rede de amizades e de influências para se chegar, através de propinas ou de favores, a posição de controle daquilo que formalmente é ilegal. É necessário imaginar essa mesma situação multiplicada em diversas áreas: jogo do bicho, clubes de carteado, salões de sinuca, cassinos clandestinos… E cada um vai acionar a sua própria rede de contatos, pois a sobrevivência do negócio depende de uma eficaz negociação. Tudo proporcional: os pequenos contraventores se entendem com os subalternos, já os tubarões conversam com quem manda…

Um outro exemplo descrito por Maschio é a venda de sentenças judiciais. No romance há um juiz homossexual que, apaixonado por um advogado, cria um esquema que atende os seus interesses carnais e pecuniários. O jovem amante faz a intermediação entre o juiz e os outros advogados da praça que representam clientes com cacife para bancar a negociata. Neste caso, o relacionamento pessoal, entre o juiz e seu amante, interfere em decisões ou procedimentos que, em tese, seriam impessoais. Numa canetada do juiz o destino de muitas pessoas foi decidido – não a partir do que está escrito nos códigos ou processos –, mas de acordo com as regras firmadas nas relações clandestinas contra as quais é inútil qualquer recurso formal.

No livro de Marinósio Filho, Dos Porões da Delegacia de Polícia, é possível encontrar a descrição de inúmeras práticas ilegais exercidas pela polícia local: tortura, flagrantes forjados, exploração sexual dentro das prisões, corrupção, interferências políticas, etc. O objetivo do autor é escrever a história da polícia de Londrina. E não se trata de uma historieta oficial.

Entre os acontecimentos investigados por Marinósio, há o caso da mudança da zona do meretrício da rua Rio Grande do Sul (atual rua Brasil) para a Vila Matos (onde fica hoje o Terminal Rodoviário). Essa mudança foi negociada nos porões pelo delegado Edmundo Mercer e envolveu também, a Prefeitura, a Câmara e a Secretaria de Saúde Pública, na época responsável pelo controle “sanitário” das prostitutas, cadastradas e submetidas obrigatoriamente a exames periódicos de saúde. Foi uma decisão que também envolveu as cafetinas mais ricas (Laura, Jô, Selma, Gaby), que segundo Marinósio, compraram os terrenos antes da publicação do decreto que anunciava a mudança. Segundo os cálculos do autor os terrenos valiam “cinco contos” e foram negociados pelos corretores por 30. 15 de entrada e o restante, um conto por mês. “Tornou-se público – escreve Marinósio Filho – que a entrada da compra dos lotes seria a parte da Delegacia”.

O efeito real, concreto e dramático dessa mudança só é possível perceber depois da instalação das casas mais elegantes na nova zona do meretrício, no final da década de 50. Com a saída das donas da noite, a rua Brasil tornou-se o palco onde a polícia estava liberada para praticar – abertamente e com o apoio da população –, os atos mais arbitrários e violentos contra a aqueles que permaneceram no local. Nos jornais apareciam todos os dias os nomes dos homens e mulheres “levados para averiguação na Delegacia de Polícia.” Invariavelmente, esses sujeitos eram presos nas pensões da rua Brasil, chamadas pelos jornalistas de “pocilgas”, “covil de vigaristas”, “antro de marginais”, “cancro carcomendo o coração de Londrina”. Em outras palavras, a polícia podia entrar nessas pensões a pontapés e tiros, valia tudo; estava legitimada a fazer qualquer bestialidade porque ali era o cancro que deveria ser extirpado do corpo da cidade. E toda a população pobre, ladrão ou não, vigarista ou não, foi exposta a violência e sem ter para onde correr. A rede clandestina que envolve neste caso, autoridades médicas, políticas, policiais e empresários do setor imobiliário afeta, de forma decisiva, toda uma parcela da população aparentemente distante da negociata. São eles que sentem no corpo o efeito real da rede clandestina.

As práticas de gestão da ilegalidade no universo da prostituição também são abordadas por Tadeu França. Longe do glamour, da música e dos encantos dos cabarés, o autor se detém no processo oculto de agenciamento e adestramento de corpos. No romance Luzes Negras do Submundo o foco se ajusta para revelar a ação dos grupos organizados para aliciar meninas em orfanatos e em regiões pobres do Paraná. Através da história da personagem Lucy percebemos a transformação do corpo da menina de 13 anos em mercadoria valiosa no mercado sexual. Essa transformação solicita todo um conjunto de ameaças, torturas e humilhações. Passa pelo entorpecimento do álcool e das drogas e, também, pela recusa, já que Lucy se joga na frente de um caminhão a fim de acabar com a desventura que arruinava seu corpo.

Muito se escreve e se fala sobre o caráter fáustico das grandes boates da Vila Matos. Fazendeiros ricos, prostitutas que chegam de avião direto das capitais, grandes espetáculos musicais, extravagâncias de toda ordem. Mas nesse romance há uma perspectiva pouco explorada que é a relação subterrânea entre a Vila Matos e o bairro vizinho, a Vila do Grilo (atual Vila da Fraternidade), a primeira favela de Londrina. É como se o autor nos convidasse a olhar o meretrício a partir do território onde se amontoavam os miseráveis, os deserdados da riqueza do café. É neste espaço que a rede clandestina que anima a prostituição encontra suas mercadorias baratas: meninas que se tornavam arrimo de famílias batendo tamancos ou amassando barro em dias de chuva num trottoir pouco elegante.

Essas redes subterrâneas formadas nas décadas de 60 e 70, que envolvem principalmente atores do mundo do jogo e da prostituição, não desapareceram. Elas, ao que tudo indica, se transformaram ou foram reorganizadas em torno de negócios mais lucrativos. Há mais de uma década acompanhamos pela imprensa, as ações do Ministério Público de Londrina a fim de desbaratar as redes clandestinas que investem contra o patrimônio público. Esquema de caixa dois de campanha eleitoral, desvio de dinheiro público, fraudes em licitações, “mensalinho”, contratação de amigos para cargos comissionados, propinas para aprovação de projetos, lavagem de dinheiro, compra de votos, etc. Estratégias de controle da ilegalidade não muito originais, mas talvez seus agentes rendam belas histórias sobre a atual rede clandestina londrinense. Existe uma, por exemplo, murmurada em rodas maledicentes que revela o caráter áspero de um desses novos atores: “— Avisa esse filho da p* que ele tem família! Avisa pra ele que ele tem família.” Conta-se que era com essas palavras que um político contrariado queria resolver as suas diferenças com um de seus desafetos. Quem quiser praticar o jornalismo investigativo, tendo como foco a nova configuração da rede de ilegalidades, ou mesmo escrever uma ficção de denúncia deve, portanto, lembrar-se do conselho dado à Edison Maschio em 1959. E se tiver família, é melhor que todos saiam da cidade.

Créditos:

Tony Hara é formado em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Fez mestrado (UFPR) e doutorado (UNICAMP) em História da Cultura. Publicou um ensaio biográfico do poeta Paulo Leminski para a Coleção Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder (Coleção Caros Amigos, 2002); Estilo de vida e a verdade: o exercício ético do hipócrita e do cínico. In: Revista Verve. (PUC-SP, 2005); Os descaminhos da nau foucaultiana: o pensamento e a experimentação. In: Figuras de Foucault. (Autêntica, 2006). Além das palavras de ordem: a comunicação como diagnóstico da atualidade. In: Para uma vida não-fascista. (Autêntica, 2009). Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado em História da Cultura na Unicamp.

Ilustração: Carlos Angelo

http://www.arotativa.com/arotativa/refletir/dos-poroes-da-memoria/

Um comentário:

Michel Bossone Avanzo disse...

Onde tem o livro para vender?